quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Dois altos

Amo pensar que apesar de não ter irmãos sempre morei em uma rua cheia de crianças da minha idade, o que me livrou de uma infância solitária. E nós, pequenos bons cidadãos interioranos, brincávamos ali com liberdade. Os jogos eram simples e intensos, aqueles que todo mundo conhece. As vezes tudo o que você tinha que fazer era correr e tocar no amigo para que ele então passasse a ocupar essa árdua função de caçar o outro. Porém, se algo urgente precisasse ser feito, diante de algum infortúnio não programado, era só gritar "dois altos" que o jogo paralisava como se tivessem apertado o botão pause no controle do playstation.

O tempo passa, brincadeiras deixam de ser uma realidade, mas a necessidade de pausar a correria dos dias permanece. Gritar "dois altos" é preciso quando o fôlego vai embora diante dos novos ares que começamos a respirar. Mudanças são boas experiências, mas nem sempre chegam em tom pacífico, as vezes estremecem toda a nossa estrutura e fazem surgir, de forma rápida, um turbilhão de interrogações sobre quem realmente somos e como devemos caminhar. 

Pedir "dois altos" é imprescindível quando as obrigações engolem o tempo livre e aquela velha ansiedade chega como uma inesperada dor de facão. É preciso selecionar o que deve ser prioridade, o que pode ficar momentaneamente em segundo plano, sacrificando uma coisa ou outra sem perder de vista a verdade de que não somos um apanhado de dispositivos eletromecânicos, mas carne viva carente dos melhores prazeres da vida. Daí a gente convoca o Seu Buda para aprender a alcançar o necessário equilíbrio do caminho do meio. 

Reconhecer o tempo de pausa é, antes de tudo, um ato de humildade, coisa de gente que conhece as próprias fragilidades e sabe que a incansabilidade é virtude dos personagens de ficção. Aqui, onde a realidade dita as regras dos jogos, melhor é pedir "dois altos" para se cuidar e, contando com o necessário respeito dos que estão ao redor, voltar a correr em busca dos nossos mais variados objetivos. No fim das contas, a gente só não pode se cansar de investir na gente. 

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