Quando se fala no divino, uma memória é evocada. Um ser aparece à nossa vista, muitas de suas características podem variar de pessoa para pessoa, mas algo parece ser unânime: trata-se de um homem. Afinal de contas, desde muito cedo, nos apresentam não só o papai noel, mas também o papai do céu. E este, embora não se encarregue de nos entregar um presente uma vez no ano, se faz presente em todos os nossos dias. Ele é a nossa gênese, motivo da existência, fonte de bondade.
Deus é pai. Segundo as biografias de Jesus Cristo, apontado como filho primogênito da família divina, este o chamava de aba, vocábulo que em aramaico denota uma forma carinhosa de se referir ao genitor. Seria como o nosso papai, paizinho, painho. Isso diz muito sobre Deus-pai, afinal de contas, provavelmente nenhum filho vale-se de carinho até mesmo na escolha de um vocativo quando está diante de um pai que não oferece o mesmo. Há aqui a relação de um filho carinhoso, criado e guiado por um pai que também é fonte de carinho.
Deus é um pai carinhoso, mas nem sempre é assim que o pintam. "Cuidado, papai do céu está vendo", "Olha, papai do céu castiga", quem nunca ouviu isso? E ele se torna, em nosso imaginário, como o Grande Irmão de George Orwell. Vigilante, não por ser sinônimo de presença acolhedora em cada segundo da existência, mas por ser aquele que está disposto a reagir negativamente diante de cada vacilo dado. Ele está em todo lugar, não para amar, proteger, cuidar, como um pai super presente, mas para agir como o ditador celestial, indispensável para aqueles que buscam a domesticação humana. Declaro todos os dias o meu ateísmo a esse deus, não vejo nele o aba de Jesus.
Porém, Deus também é mãe. Foi ele quem certa vez proferiu palavras de lamento, por meio de Jesus, a Jerusalém, que insistia em desviar-se do seu cuidado. "Quantas vezes eu quis ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos, e tu não quiseste", disse. Ele se mostra como uma mãe acolhedora que insiste em ter os seus filhos e filhas por perto, ainda que estes anseiem por caminhar para longe do aconchego de suas asas. Mães são cheias de sensibilidade, não costumam desistir, abandonar, são significativamente mais inclinadas a compreender o tom dos nossos passos. Deus é assim.
A realidade brasileira descortina a força do amor materno, de forma que não é difícil encontrar casos de mães que se desdobram para que, sozinhas, destinem toda sorte de cuidados aos seus filhos. No outro lado da moeda, encontra-se o abandono paterno, um fato tão consolidado que profissionais da justiça costumam dizer que vivemos uma verdadeira epidemia social desse tipo de comportamento. O Eterno destaca a baixa probabilidade de uma mãe abandonar os seus filhos, por meio do profeta Isaías, ele indaga: "Pode uma mãe se esquecer da sua criança e não ter compaixão do filho que gerou?". E continua afirmando que ainda que algo tão difícil aconteça, Ele não se esquecerá dos seus filhos e filhas. Para afirmar a grandeza do seu amor, Deus o compara ao que sente uma mãe, e reconhece, como dito, a baixa probabilidade do abandono materno.
Deus é o grande amor multiforme. Se faz mãe, quando precisamos das qualidades intrínsecas ao amor materno, e se faz pai, quando precisamos daquilo que há de positivo em uma boa e saudável paternidade. A obra A Cabana, escrita por William P. Young, é feliz quando retrata essa versatilidade da presença divina em nossas vidas. Mackenzie Allen, um dos personagens centrais da trama, é atraído ao encontro com o Eterno e se depara com o acolhimento de uma afetuosa mulher negra, a mãe que ele precisava para enfrentar aquele tempo, até mesmo por não ter tido, ao longo da vida, um bom referencial de pai.
Compreender essa realidade confronta a busca humana pelo engessamento daquilo que é divino, além de tocar em verdadeiras feridas sociais como o machismo e o patriarcalismo. A imagem puramente masculina de Deus reforça as nossas construções históricas, uma vez que ninguém nunca viu, verdadeiramente, a sua face. No entanto, muita gente testifica ter sentido o seu amor. O apóstolo João foi uma dessas pessoas, ele proclama em uma das suas cartas:"Deus é amor". E o amor, todos sabem, não pode ser cercado, é multiforme, é de pai, é de mãe.