domingo, 30 de agosto de 2020

Deus é mãe, Deus é pai

Quando se fala no divino, uma memória é evocada. Um ser aparece à nossa vista, muitas de suas características podem variar de pessoa para pessoa, mas algo parece ser unânime: trata-se de um homem. Afinal de contas, desde muito cedo, nos apresentam não só o papai noel, mas também o papai do céu. E este, embora não se encarregue de nos entregar um presente uma vez no ano, se faz presente em todos os nossos dias. Ele é a nossa gênese, motivo da existência, fonte de bondade.

Deus é pai. Segundo as biografias de Jesus Cristo, apontado como filho primogênito da família divina, este o chamava de aba, vocábulo que em aramaico denota uma forma carinhosa de se referir ao genitor. Seria como o nosso papai, paizinho, painho. Isso diz muito sobre Deus-pai, afinal de contas, provavelmente nenhum filho vale-se de carinho até mesmo na escolha de um vocativo quando está diante de um pai que não oferece o mesmo. Há aqui a relação de um filho carinhoso, criado e guiado por um pai que também é fonte de carinho.

Deus é um pai carinhoso, mas nem sempre é assim que o pintam. "Cuidado, papai do céu está vendo",  "Olha, papai do céu castiga", quem nunca ouviu isso? E ele se torna, em nosso imaginário, como o Grande Irmão de George Orwell. Vigilante, não por ser sinônimo de presença acolhedora em cada segundo da existência, mas por ser aquele que está disposto a reagir negativamente diante de cada vacilo dado. Ele está em todo lugar, não para amar, proteger, cuidar, como um pai super presente, mas para agir como o ditador celestial, indispensável para aqueles que buscam a domesticação humana. Declaro todos os dias o meu ateísmo a esse deus, não vejo nele o aba de Jesus.

Porém, Deus também é mãe. Foi ele quem certa vez proferiu palavras de lamento, por meio de Jesus, a Jerusalém, que insistia em desviar-se do seu cuidado. "Quantas vezes eu quis ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos, e tu não quiseste", disse. Ele se mostra como uma mãe acolhedora que insiste em ter os seus filhos e filhas por perto, ainda que estes anseiem por caminhar para longe do aconchego de suas asas. Mães são cheias de sensibilidade, não costumam desistir, abandonar, são significativamente mais inclinadas a compreender o tom dos nossos passos. Deus é assim.

A realidade brasileira descortina a força do amor materno, de forma que não é difícil encontrar casos de mães que se desdobram para que, sozinhas, destinem toda sorte de cuidados aos seus filhos. No outro lado da moeda, encontra-se o abandono paterno, um fato tão consolidado que profissionais da justiça costumam dizer que vivemos uma verdadeira epidemia social desse tipo de comportamento. O Eterno destaca a baixa probabilidade de uma mãe abandonar os seus filhos, por meio do profeta Isaías, ele indaga: "Pode uma mãe se esquecer da sua criança e não ter compaixão do filho que gerou?". E continua afirmando que ainda que algo tão difícil aconteça, Ele não se esquecerá dos seus filhos e filhas. Para afirmar a grandeza do seu amor, Deus o compara ao que sente uma mãe, e reconhece, como dito, a baixa probabilidade do abandono materno.

Deus é o grande amor multiforme. Se faz mãe, quando precisamos das qualidades intrínsecas ao amor materno, e se faz pai, quando precisamos daquilo que há de positivo em uma boa e saudável paternidade. A obra A Cabana, escrita por William P. Young, é feliz quando retrata essa versatilidade da presença divina em nossas vidas. Mackenzie Allen, um dos personagens centrais da trama, é atraído ao encontro com o Eterno e se depara com o acolhimento de uma afetuosa mulher negra, a mãe que ele precisava para enfrentar aquele tempo, até mesmo por não ter tido, ao longo da vida, um bom referencial de pai. 

Compreender essa realidade confronta a busca humana pelo engessamento daquilo que é divino, além de tocar em verdadeiras feridas sociais como o machismo e o patriarcalismo. A imagem puramente masculina de Deus reforça as nossas construções históricas, uma vez que ninguém nunca viu, verdadeiramente, a sua face. No entanto, muita gente testifica ter sentido o seu amor. O apóstolo João foi uma dessas pessoas, ele proclama em uma das suas cartas:"Deus é amor". E o amor, todos sabem, não pode ser cercado, é multiforme, é de pai, é de mãe.  

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Dois altos

Amo pensar que apesar de não ter irmãos sempre morei em uma rua cheia de crianças da minha idade, o que me livrou de uma infância solitária. E nós, pequenos bons cidadãos interioranos, brincávamos ali com liberdade. Os jogos eram simples e intensos, aqueles que todo mundo conhece. As vezes tudo o que você tinha que fazer era correr e tocar no amigo para que ele então passasse a ocupar essa árdua função de caçar o outro. Porém, se algo urgente precisasse ser feito, diante de algum infortúnio não programado, era só gritar "dois altos" que o jogo paralisava como se tivessem apertado o botão pause no controle do playstation.

O tempo passa, brincadeiras deixam de ser uma realidade, mas a necessidade de pausar a correria dos dias permanece. Gritar "dois altos" é preciso quando o fôlego vai embora diante dos novos ares que começamos a respirar. Mudanças são boas experiências, mas nem sempre chegam em tom pacífico, as vezes estremecem toda a nossa estrutura e fazem surgir, de forma rápida, um turbilhão de interrogações sobre quem realmente somos e como devemos caminhar. 

Pedir "dois altos" é imprescindível quando as obrigações engolem o tempo livre e aquela velha ansiedade chega como uma inesperada dor de facão. É preciso selecionar o que deve ser prioridade, o que pode ficar momentaneamente em segundo plano, sacrificando uma coisa ou outra sem perder de vista a verdade de que não somos um apanhado de dispositivos eletromecânicos, mas carne viva carente dos melhores prazeres da vida. Daí a gente convoca o Seu Buda para aprender a alcançar o necessário equilíbrio do caminho do meio. 

Reconhecer o tempo de pausa é, antes de tudo, um ato de humildade, coisa de gente que conhece as próprias fragilidades e sabe que a incansabilidade é virtude dos personagens de ficção. Aqui, onde a realidade dita as regras dos jogos, melhor é pedir "dois altos" para se cuidar e, contando com o necessário respeito dos que estão ao redor, voltar a correr em busca dos nossos mais variados objetivos. No fim das contas, a gente só não pode se cansar de investir na gente. 

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Biquini de Natal - Marcos Almeida


A Terra faz festa pra Ele
O céu se estendeu sobre a praia
Deixa o verão te aquecer
A nossa rua dizer que é natal


Flocos de neve, bonecos de gelo, meias grossas, roupas pesadas, lareira, são alguns elementos característicos da comemoração de natal. Há em tal fato a inevitável influência de países que vivem o inverno neste período do ano. Até mesmo o São Nicolau de Mira, conhecido popularmente como Papai Noel, mudou-se para o Pólo Norte para se adaptar à realidade de países como a Finlândia. Conta-se que na década de 1950, o governo finlandês construiu uma vila na região da Lapônia que ficou conhecida como lar oficial do Papai Noel, fator que estimulava o turismo local. 

Talvez faça mais sentido associar o natal ao inverno se levado em consideração que a temperatura é baixa na região de Belém neste período do ano, mas este fato também é contestado por aqueles que apontam que provavelmente Cristo não nasceu em meio ao inverno, pois, segundo a Bíblia, no momento em que Ele veio ao mundo, pastores vigiavam seus rebanhos, tarefa que seria árdua demais para ser feita sob baixas temperaturas. Alguns estudiosos arriscam que o Nazareno veio ao mundo em tempo mais ameno, como em uma primavera de abril. 

Deixando de lado as (des)construções históricas, e todo o debate que gira em torno do real momento em que o Salvador veio ao mundo, a verdade é que muitos dos elementos utilizados para comemoração do natal se distanciam da nossa realidade. Em um país tropical como o Brasil, falar em bonecos de neve é, no máximo, pensar no quanto seria bom abraçá-los para amenizar o calor que marca os nossos dezembros e sinaliza a chegada do verão. Inspirado nisso, o cantor e compositor Marcos Almeida, nos presenteou em 2014 com o single "Biquini de Natal". 

Trazendo a junção de imagens clássicas do natal, como a de luzes coloridas, e imagens típicas do verão dos países que estão abaixo da linha do Equador, Marcos Almeida aproxima a beleza da recordação do nascimento de Jesus de Nazaré à nossa realidade. Não mais neve, raios solares, não mais roupas pesadas, biquini... mas apesar de tais discrepâncias, os bons sentimentos que movem - ou deveriam mover - os corações das pessoas neste período do ano os unem. Seja no inverno, seja no verão, a recordação de que o Eterno nos enviou o seu amado Filho, nos faz pensar sobre amor, graça, perdão, simplicidade, valores que independem dos elementos utilizados em nossas comemorações.

Biquini de Natal é, nas palavras do próprio Marcos Almeida, Cristo nos trópicos, o céu se estendendo sobre a praia, a paz que se sente quando vemos reconciliadas nEle identidade e eternidade, Brasil e Reino, pertencimento e jornada, uma boa pedida para aproveitar o nosso caloroso natal com bela trilha sonora. 

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Samaritano

Deus me proteja da sua inveja, Deus me defenda da sua macumba, Deus me salve da sua praga, Deus me ajude da sua raiva, Deus me imunize do seu veneno, Deus me poupe do seu fim. Deus me acompanhe, Deus me ampare, Deus me levante, Deus me dê força. Deus me perdoe por querer que Deus me livre e guarde de você. (Rita Lee)

Um dia Jesus estava se preparando para ir com os seus discípulos para Jerusalém. Por conta disso, enviou alguns mensageiros para fazerem os preparativos. Eles entraram em uma cidade samaritana, mas não foram bem recebidos, pois os samaritanos não desejavam ter a presença de Jesus  por ali. Se tratava de um povo que estava em conflito com os judeus, já que tinham uma convicção religiosa diferente. Os judeus evitavam qualquer tipo de contato com os samaritanos, e os acusavam de distorcer as escrituras sagradas. 

Sabendo da rejeição sofrida por Jesus, seus discípulos prontamente sugeriram: "Mestre, o senhor quer que invoquemos um raio do céu para acabar com eles?". Indagação que me soa familiar quando olho para os nossos dias, marcados por terreiros destruídos, gritos de caça às bruxas, invocação de guerras santas, boicotes infantis, anseio por armas, mortes. A familiaridade aumenta quando identifico que tais posicionamentos partem de pessoas que dizem ser seguidoras do Mestre de Nazaré. Pois é, qualquer semelhança, certamente não é mera coincidência. 

Diante da proposta violenta de seus discípulos, o Príncipe da Paz, por óbvio, os repreendeu: "Vocês não sabem de que espírito sois. Porque o Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las". Resposta que desestrutura todo muro construído por homens que insistem em não conviver com o diferente, em fazer de suas convicções morais, políticas, religiosas, a munição que precisam para destruir vidas. Se passaram mais de dois mil anos, e os que dizem estar perto do maior Mestre da Humanidade permanecem usando o divino como justificativa para a podridão dos seus corações egoístas, intolerantes, preconceituosos. 

Ao contrário do que esperavam, Jesus se relacionou com os samaritanos e derramou sobre eles o seu amor. Além disso, os exaltou em uma de suas parábolas, ao colocar um samaritano como alguém que teve sensibilidade suficiente para socorrer um indivíduo que estava ferido no caminho. Postura que, segundo a parábola, divergia dos judeus, que estabeleceram como prioridade os seus deveres eclesiásticos. Nisso, mais uma vez, o Mestre nos ensina que os seus seguidores tendem a colocar dogmas acima da vida, do humano. Suas agendas estão cheias de cultos, marchas, shows, subidas de montes, profecias, mas vazias do que realmente importa. E o Apóstolo Paulo, porém, já os advertia: nada disso adianta se falta amor! Nada disso importa se falta humanidade, altruísmo, pacifismo.

Tenho absoluta certeza, que existem inúmeros samaritanos da atualidade muito mais alinhados ao coração do Pai do que os doutores da Lei, e a minha oração é para que eu seja como eles. Sim, nesse mundo de "seguidores radicais", "loucos por Jesus" e afins, eu prefiro ser o bom samaritano. Humano, imperfeito, mas alinhado ao coração do Pai. 

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Deus do conreto

(...) qualquer religião que professe uma preocupação com as almas dos homens, mas não esteja igualmente preocupada com as favelas a que estão condenados, com as condições econômicas que os estrangulam e com as condições sociais que os debilitam, é uma religião espiritualmente moribunda, que só falta ser enterrada. Já se disse muito bem: Uma religião que termina no indivíduo é uma religião que termina. (Martin Luther King)

Ter tido espontâneo contato com as escrituras desde a infância sempre foi motivo de orgulho para mim, e a cada dia me convencia de que a soma resultante dos meus devocionais e de tudo o que ouvia na instituição religiosa que frequentava seriam suficientes para que eu entendesse as palavras do Eterno. Eram compreensões desvinculadas da minha relação com as pessoas, de uma análise da sociedade... uma fé baseada exclusivamente no plano espiritual. Deus estava lá, não aqui, se preocupava com o invisível, o visível era problema dos que se recusavam a ouví-lo. Eu nada tinha a ver com a Terra, era um cidadão do céu e deveria perder a minha vida aqui para viver lá. Fugir disso era me corromper com o mundo. Ledo engano. 

Por escolher uma graduação que não era oferecida em minha cidade, saí de casa pela primeira vez. Morar sozinho e começar a trilhar a estrada acadêmica foram grandes instrumentos para um processo de mudança das minhas convicções em relação a muitas coisas, sobretudo, a minha forma de ver Deus. Ao me ver distante da instituição religiosa que sempre frequentei, fui condicionado a aprender com o Eterno no meu dia a dia como nunca antes. E eu O encontrei nas minhas relações com pessoas dotadas de características tão inusitadas se comparadas com as daquelas que eu vivia anteriormente. Eu O encontrei nos ônibus, em aulas, em reuniões, em confraternizações e no silêncio do meu quarto. Eu O encontrei nos momentos felizes, bem como naqueles dias em que tudo estava de mal a pior e eu só tinha a Sua companhia. Assim, aquele Deus tão metafísico dava lugar ao que foi apresentado por Jesus, um Deus que se encarnou por completo, que se relacionou, se identificou e participou de uma sociedade sendo relevante nela. Deus está no concreto.

Encontrar Deus no concreto é voltar a dar importância a todos os que estão ao redor. É entender que o Ele não está confinado em um galpão, Ele nos fez igreja para que pudéssemos nos manifestar com amor e graça em todo lugar. Sendo assim, tão edificante quanto estar com outros cristãos em determinado lugar, é estar com muitos outros amigos e familiares que talvez não sejam cristãos; é estar com o diferente, e de coração aberto, humildemente, aprender com todos eles. Encontrar Deus no concreto é se indignar com os zilhões de problemas sociais do nosso país e entender que a luta dos injustiçados também é nossa, porque ouvimos o Mestre dizer: "Está vendo todos eles? São seus irmãos, ame-os como você ama a sua própria vida!" Encontrar Deus no concreto é entender que Ele, sendo amor, não pode ser entendido por meio de uma vida religiosamente uniforme e solitária. Encontrar Deus no concreto é sacralizar a vida como um todo, considerando-a como a tela que o Eterno-Pintor insiste em colorir.

Em meio a essa realidade que dia após dia se descortina no seio da minha existência, tenho estudado sobre a vida do pastor Martin Luther King Jr. Por meio de sua autobiografia, organizada pelo professor Clayborne Carson, tenho encontrado inspiração em meio às suas indignações diante das chagas sociais de seu tempo. Na obra, há relatos da luta contra a segregação racial em diversas cidades do sul dos Estados Unidos, sendo Birmingham a que apresentava maior resistência por parte dos segregacionistas. Nessa cidade, King foi surpreendido por uma carta redigida por determinados pastores pedindo o fim das manifestações. Nesse contexto, o pastor escreveu uma longa resposta a fim de defender o que estava sendo feito por ele e os demais ativistas. Um texto inspirador! Nela, King, entre outras coisas, lamenta a indiferença da Igreja da época:

"Em meio a uma vigorosa luta para livrar nossa nação da injustiça social e econômica, ouvi muitos pastores dizerem 'Trata-se de questões sociais nas quais o evangelho não tem nenhum interesse real'. E vi muitas igrejas se dedicando a uma religião totalmente transcendental que estabelece uma distinção estranha, não bíblica, entre corpo e alma, sagrado e secular. (...) Assim, com frequência a Igreja é uma voz fraca, improdutiva, com um som ambíguo. Assim, com frequência a Igreja é uma arquidefensora do status quo. Longe de ser ameaçada pela presença da Igreja, a estrutura de poder da comunidade em geral é consolada por sua aprovação silenciosa - e muitas vezes declarada - das coisas como elas são." (p.241-242)*

Diante de tudo o que tenho lido, posso dizer que o pastor Martin Luther King Jr. é, sem dúvidas, um grande exemplo de cristão que enxerga Deus e sua obra no concreto, e em meio a um forte contexto religioso marcado por mobilizações voltadas apenas ao plano espiritual - que exigem menos sacrifícios - é bom ser despertado por um referencial como ele.

Não digo tudo isso por não crer nos benefícios advindos do plano espiritual, eles são inegáveis, mas também é verdade o fato de que não temos uma fé viva se esta é completamente pautada em espiritualidades. O apóstolo Tiago, indaga (Tiago 2:14-17): Do que adianta eu dizer que tenho fé, se não tenho obras? Do que adianta dizer que tenho fé em Deus, e ao ver um necessitado nada faço no concreto? A fé sem nenhuma obra não tem vida, é morta. Ouso dizer, então, que a fé fundamentada em um Deus metafísico não é viva. O Eterno nos convida a viver o caminho da fé que vive, uma fé que nada contra a corrente da religiosidade e da espiritualização exacerbada que nos impede de dizer com clareza: Deus está aqui.



*CARSON, C. (org.). A Autobiografia de Martin Luther King. Tradução de: Carlos Alberto Medeiros. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.